Encostei-me a ele. Sussurrei-lhe ao ouvido, enquanto estendia os meus braços para o agarrar uma última vez, obrigado por tudo e gosto muito, muito de ti. A minha mãe desamparada de tudo, prostrada na cadeira, afagava-lhe os pés. O peito disforme, duro, em rouca respiração, e os olhos calados como se fosse a boca que tivesse que engolir toda a luz mais cruel do mundo. Os tubos no nariz, na boca, nos braços, os tubos dentro de ti. Os teus tubos espetados dentro de mim. Também. E tudo à minha volta está desfigurado. As caras, os sons, os gestos, as palavras das pessoas de rosto ignorado. E sinto mãos nos meus ombros que já não são as tuas. Mãos a dizerem anda, anda daí. Mãos a tirarem-me do desespero de ter a certeza de que te perdi. Mãos que não sabem o que dizer, anda, anda daí. Como se esta dor que me enche não fosse justa. Como se não morresse quem me fez crescer. Como se eu soubesse como perder, diante de mim, a pessoa mais importante da minha vida. Como se eu soubesse o que fazer. As minhas mãos nos ombros caídos. Curvadas no momento preciso de tudo perder. Anda, anda daí. E ele já não luta. Já não consegue lutar. A pele morta e dentro da pele tudo naufrago de vida. E minto-me. Ele vai ficar bom. Só para não me sentir sozinho sobre o tamanho infinito deste universo sem ti. E dói como o sol a cravar-se numa ferida aberta de sal. Eu nunca me esquecerei. A minha avó. Triste. Viúva de tudo. Fechada. Flor fechada. A separar-se de 53 anos da sua vida. Assim. Num último e ofegante respirar. A morrer-lhe nos olhos apesar de todos os cuidados. 53 anos de vida agarrados ao último bip... bip... bip... das máquinas com os tubos. E ficamos ali. Abandonados. Sem a única figura certa de cada vida. Cada um de nós sem nada, agora. E nunca o vou esquecer. A casa de quando eu era pequeno. Os passeios de quando eu era pequeno. As palavras dele. Desde sempre. O amor dele para sempre. E eu a ser melhor apenas por ele. E ele a ensinar. A correr. Ele a ser os castelos construídos na praia. Ele a ser as pegadas que eu pisava na areia molhada. Ele a ser os aplausos nas bancadas. Ele a ser sempre a primeira voz de conforto. Ele a ser a mão sobre a cabeça. O colo ao corpo exausto. Sabes que se pudesse trocar-me-ia por ti. Agora mesmo. Trocaria tudo, cada dia que me resta, só para ouvir o meu nome novamente na tua boca. Mas a vida que me protege é a mesma que te roubou. A que te derrubou nesse corpo frágil. Ainda que amasses a vida mais do que tudo, ainda que sempre quisesses devolver-te aos dias de tempo útil. E crescem-me todas as memórias. E doem. Fundo no estômago. E dói tanto. Tanto. E tão fundo. A casa fria de sombras. Os móveis cobertos por mantos de pó. O teu lugar na mesa. Vazio. Silêncio e vultos de carne nos meus olhos. E vejo-te ainda. A entrares no teu quarto. A rires. A tua secretária. O relógio na sala sem corda. E a casa de quando eu era pequeno está fria. Húmida em todos os cantos. Como se ela própria chorasse nas paredes a tua morte com pingas grossas de dor fria. E depois. Só mãos cheias de gente nos meus ombros. É melhor assim. Força rapaz. Ele sofria muito. Quantos anos tinha? Coitadinho. Mãos cheias de gente que me procura e me abraça. Mãos que se desenrolam como mangueiras e se recolhem depois do serviço cumprido. Mãos de sinto muito. E eu olho-te. Imóvel. Boca colada aos lábios rebentados. E eu olho-te. Amarelecido. Frio. E perdi-te. E todo o teu frio dentro de mim. Como se eu não soubesse que o mundo agora apenas parece continuar. Uma mágoa indiferente a tudo o que me resta. Tu calado, sem voz. Para sempre. E agora? E eu? Quem me vai dizer todas as coisas, vô? Quem vai regar de bom tudo o que faço? E tu para sempre imóvel. E eu tão longe de ti neste silêncio abruptamente imposto. Separados por tudo. Como se eu morresse também. Para nunca mais me querer levantar.
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3 comentários:
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(abraço)
Mano, a melhor homenagem que sempre lhe fizeste foi falar dele a toda a gente. Foi escrever o que sobre ele escreveste. E foi sinceramente seres a melhor pessoa que conheço. Abraço!
Triste, sentido, verdadeiro, forte.
Um abraço
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