Amanhã vou levar o meu Avô à praia. À casa que ele comprou, muito antes da sua memória ter sido esmagada. Hoje, esse mesmo lugar desocupado, essa memória apagada, faz com que o meu Avô viva afastado, cada vez mais, daqueles que, como eu, ainda gostariam de ver naquele corpo o hálito forte e as mãos ocupadas. Desde cedo que me habituei a depender do meu Avô e a confiar nele como um imberbe pássaro confia o repouso das suas pequenas asas à superfície acolhedora de um ramo. O meu Avô já não existe. Há apenas um corpo que me diz que ele já viveu ali. Esta é a verdade. E todas as palavras que me digam, apenas servem para humedecer ainda mais os meus olhos. Estou unido ao meu Avô e, de cada vez que estou com ele, sinto a sua morte a avançar dentro de mim. Toma-me todo. Fico febril, mãos, pés, todo o corpo gelado, e sinto o meu sangue fraco a chegar-me, lenta e pausadamente, aos órgãos. Sinto-lhe a angústia que o assola nos momentos de lucidez e o fazem chorar, chorar muito, ainda que por pouco tempo. Subitamente, tudo passa. Eu fico ali, a olhar novamente para aqueles olhos inúteis, naufragos e desamparados. Para aqueles olhos apagados em silêncio. Silêncio escuro, triste e solitário. Vou levá-lo à praia. Vamos entrar em casa e ele já não vai repetir as frases do costume, já não vai dizer "que comprou a casa a pensar nos netos", já não vai dizer que "a tua avó não queria. Pensava que eu não tinha dinheiro", não me vai mandar "abrir as torneiras, porque devem estar cheias de ferrugem", nem me vai pedir para ir "buscar o jornal lá baixo, enquanto eu abro as persianas" nem "para trazer a televisão da cozinha para a sala". Já sei o que se vai passar. Vou andar triste o dia todo. Vou pensar no quanto gostarias de te aperceber que o dia está bonito e de como o sol já chama tanta gente para praia. Vou-me lembrar de quando era pequeno e brincava contigo. De como facilmente me convencias a largar os desenhos animados da televisão, para muito cedo, mal amanhecia, corrermos para a praia com os meus camiões, pás, castelos e bolas atreladas às tuas mãos. Vou-me lembrar de como os dias cresciam quentes sobre as nossas brincadeiras junto à àgua e de como me ensinaste a rematar sem fazer feridas nos dedos dos pés. Muito cedo te confiei o meu sono. Nos teus braços, enrodilhado em lençois, eu adormecia descansado, enquanto me convencias que "quem quer ser grande tem de dormir cedo". Amanhã, vou-me lembrar de quando a tua voz me orientava e protegia. "Agora, vamos descansar os dois. Assim, só um bocadinho.". Vou chorar, amanhã, bem o sei. Houve alturas em que o que chorava valia muitas mortes eternas. Agora, habituo-me a saber que apenas posso contar com a tua ausência de e em tudo. Infelizmente, não sei aceitar perder-te assim. Como chuva de primavera que cai em fios nas varetas dos guardas-chuvas. Tudo é encontro com a tristeza. E o pior, o pior mesmo, é saber que as nossas memórias são hoje apenas lembradas por mim. Estás aí na tua solidão eterna, perene e infinita, e deixaste-me aqui, a olhar para ti, neste mundo cheio de gente tão longe de mim e de tudo o que eu quero. As nossas memórias, Avô, eu não as posso gritar a mais ninguém que não tu.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
7 comentários:
até chorei.
ia pedir desculpa, mas parece-me que devo agradecer.
Uma lágrima e um nó na garganta. O tempo também pinga aqui.
O nó que a S.B. fala também foi sentido aqui... Estranho Mundo onde a partilha faz disto...
Acontece-me, por vezes, empreender uma luta danada em busca das palavras mais capazes de explicarem o silêncio.
...E as palavras, quase sempre, tratam de pôr a nu as minhas limitações!
Quando a memória sente a prematura necessidade de procurar outra memória que lhe sirva de aconchego, e nela encontra terra fértil, as lágrimas, sendo espelho de saudade, também podem assumir-se como a mais perfeita extensão da alegria.
Ferrugem?!... Só nas teias que as aranhas já não usam!
Tinha lido este texto na vertical e prometi a mim mesma voltar cá mais tarde.
Uma lágrima no rosto, um nó na garganta, um vazio na alma. De forma bem diferente perdi também um avô de quem muito gostava e de quem guardo ternas e saudosas semelhantes memórias...
Muito bom. Para mim este é o teu melhor texto. Pleno de sentimento.
Enviar um comentário