sexta-feira, julho 03, 2009

o mail que ficou por enviar

já tive alguns sonhos estranhos
sabes? recordo-me hoje mal deles, mas há quase sempre uma avenida
que desemboca num cais
e um candeeiro com uma luz nervosa
a envolver a voz gravada sobre a minha memória. longe
daqui
eu sei -
só longe daqui é que encontrarei o que me falta
era assim que queria ter começado. foi nisso
que pensei quando me levantei da cama
para te escrever. lembro-me de quando nos conhecemos
nestes murmúrios distantes e falávamos já nem sei
muito bem do quê. mas éramos cúmplices. sem nunca nos termos visto. estávamos
vivos e isso era suficiente. bocejávamos arrastados noite adentro
pelo silêncio que nos enchia de ausência e saudade o coração. e achei-nos
apaixonados. em momentos tu eras tudo. o que enfurecidamente queria dizer
quis contar-te e responder a tudo. desejava-te boa noite e
as minhas mãos estavam vazias de ti e cheias de falta de coragem
para cumprirem o que as
palavras teimaram em dizer. quis correr as ruas até ti. pensar em ti
e imaginar. apenas imaginar como seria tua voz. como seria procurar a tua voz
sussurrada no interior mais húmido e carnal do desejo excessivo que suspende
as noites dos amantes no tempo. e correria todas as ruas. mesmo que morresse
de visões de sonhos por sonhar. e, sabes?, ainda hoje penso nisso
és ainda sangue por fervilhar, mãos encharcadas nas veias e pele cansada
destes dias tão duros. agora que te escrevo
não sonho mais. escrevo-te. apenas. escrevo-te na certeza
de que saberás que te ouço e leio em mim. és mar
curvado sobre os rostos magoados a
parte calcinada do pulso que cintilou no fraco equilíbrio
das lâminas sobre o corpo. e sorririas? dantes? olhar-me-ias nos olhos
e sorririas? apenas isso. se sorririas? com leve e explosivo mistério
de cor de sépia. não te peço
que me contes se chegaste a pensar dizer-me
entre todos os sorrisos de todos os instantes
se chegaste a pensar dizer-me
sabes quanto tempo esperei por ti?
hoje
sei que fomos perdendo definição
numa lenta degradação de papel e palavras
doentes enfermas
mas é a única coisa que sei trazer comigo. a única coisa que te soube dar.
palavras. todas as que possas supor. mesmo
as que não te cheguei a dizer
talvez num passeio junto ao rio
ou naquele dia que poderias ter usado um vestido azul
e consentirias o primeiro beijo
depois do sol morrer bem lá longe no mar. e a tua mão
caberá mesmo dentro da minha? gostaria
de poder dizer que esta é a última vez que penso em ti
mas não ignoro que pensarei se saberás ler
este e.mail que ficou por enviar. porque quase tudo ainda te evoca.
por isso escrevo cada vez menos. ando cada vez menos lúcido. dependo disso.
tudo
é tédio. também. já nem o isolamento me acalma. a solidão é agora
o meu próprio naufrágio de fim de noite.
talvez por isso me vá calar. e tentar esquecer
como me poderias ter chamado. que nomes me terias dado. o
quanto ansiei saber se nos quisemos realmente. se houve esse desejo.
mas aguento calar-me com essa ferida. confesso-te. até isso farei. rasgarei
as folhas brancas
páginas de ti com estes mesmos dedos que teria usado
do pescoço ao sexo para me trazer de volta ao mundo por ti. e
dizer-te alguns dias depois
como ainda saberia o sabor do teu corpo adormecido nos murmúrios
de ter dito o teu nome junto ao teu ouvido. a minha garganta no teu ouvido.
todos os músculos do meu corpo contraídos na minha garganta. e a minha garganta
dentro de ti. o peso do meu corpo a descansar todas as mortes
no teu colo, a minha cabeça no eterno anonimato de ter perdido o medo
e todas as dores. julgo
sem excesso que teria acontecido tudo isto. e consentirias? de nada vale hoje
sinto-o
pensar nisso. perenizar a agonia é uma arte que não pretendo dominar
e rasgo então imagens de ti, sinais de ti
manuscritos
desenhos palavras pintadas com as unhas. isto aliviar-me-á. destruir o que me chame a ti
sem me entregar nem por engano à morte.
já me doem as ideias de ti no cérebro
as lágrimas no corpo
as palavras sempre as putas das palavras nos lábios. a serem
um abandono sobre o bunizar frenético da dor. sentado nesta cama
vejo deslocarem-se em pavor as
paredes e tudo o que lá guardei. o teu rosto
é um sonho que tive felicidade castrada
em arrepios de vertigem. se tivesses perguntado. se me tivesses perguntado
eu saberia dizer-te qual fera
enfurecida que não deixei nunca de pensar em ti. que iria nesse
momento saltar todas as distâncias até ti. só para te
transportar no silêncio aquoso dos meus olhos
imagem de pele rasgada na ansiedade de não sonhar mais. mas só sonhei. sonâmbulo
dizer amor a sorrir-te olhos nos olhos. e foram
dias difíceis, sabes? tactateando
pelos sítios onde tudo sangra e onde se sobrevive ferido
de coisas antigas. gostaria de ter
a possibilidade de lembrar os contornos de fotografias nossas. tiraríamos
fotografias certamente. fotografias onde outras
pessoas poderiam supor o nosso amor e todas as
histórias que teríamos vivido. como no dia
em que falámos das razões. e fotografámos a nossa solidão. hoje
enquanto te escrevo
ignoro tudo o que não se passou
como se houvesse um infinito espelho a separar
a minha voz de ti enquanto esqueço
o meu nome. e o teu vou guardá-lo. para o caso de aguentar
e continuar a viver por aqui a descansar nesta vida. e nunca te beijei.
e quis muito. desvendar-te sem apagar o desejo de murmurar
o fundo isolamento da noite no teu corpo. talvez nos tenhamos abandonado
mesmo antes de termos motivos para tal. medo? não sei
vou deixar também isso a flutuar na minha cabeça
e esperar que algum dia perceba que tudo se passou noutro corpo
noutro lugar
num tempo muito diferente do nosso. este papel onde te escrevi
o que nunca te enviei
incide uma pequena luz apontada do tecto
já é noite há muito tempo e faz frio. sem peso de tempestades
há janelas abertas e eu procuro
lá a inútil cinza da minha memória. remexer as vísceras e espalhar
sobre um país maravilhoso de mulheres com rosto
e onde os suicídios são actos falhados fogo posto
sobre as sonolentas águas dos gritos repetidos. espero
que percebas que há toda a paixão e utilidade nesta carta. que a saibas
ler por entre as sombras afogadas de sol avariado. tudo
pela espessura do teu corpo. que em mim permaneceu.

mais do que apenas adeus.

6 comentários:

.l disse...

Fantástico. Simplesmente. Tudo o que fora contido é agora vociferado sem dó de a quem doer. Pelo menos fica a certeza de uma conversa acabada... ou talvez não.

A.S. disse...

Isto são diálogos permanentes. Ou monólogos, infelizmente :-)

Anónimo disse...

Um longo email com tanto para dizer
mas com certeza algumas ficaram sem ler visto as palavras não chegarem ao destino a que estavam destinadas.Bjo

A Coração disse...

Absolutamente maravilhoso. Gostei tanto...

A.S. disse...

Obrigado! São demasiadamente simpáticas comigo! :-)

Anónimo disse...

és um lambão :)