sábado, dezembro 06, 2008

a senhora que não se lembra do nome

Ela ria-se.
Apontava num caderno
amarelecido
tudo o que a memória não guardava nas mãos
Ela ria-se.
Desenhava no fundo de um espelho
indecifráveis
riscos de um tempo frio em areias nuas
Ela ria-se.
Rasgava da vida os pulsos
fracos
ardendo em direcção aos anjos enterrados no sol
Ela ria-se.
Falava de uma terra
distante
onde a lucidez do coração zumbia no interior da solidão
Ela ria-se.
Cantava às crianças
anónimas
as ruínas de não ver no mundo aquilo que amava
Ela ria-se.
Sentando todo o seu corpo numa cadeira. O peso de todos os anos sentados naquela cadeira. Ela muito sentada. Os seus gestos, ruídos e sombras. Naquela cadeira. As suas mãos ainda a tocarem em tudo o que já não conseguem tocar. Ela ainda a ser metade de tudo o que já não tem. Os olhos a verem tudo onde nada existe. Tudo no nada. Os sorrisos sem sentido a esgotarem-se na perfeição de todas as ilusões. Os gestos. Os gestos estendidos apenas para a imaginação como se um novo mundo nascesse com os dias, como se de um sopro todo o pó da memória resolvesse trazer a história para os seus olhos. Ela ria-se. E toda a harmonia oculta refazia-lhe o cenário e o pulsar do coração.

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