terça-feira, novembro 25, 2008

os teus olhos e a densa divindade do teu corpo

Ela: como dizes que sou o teu destino?

Ele: nasceste aqui. nas letras do teu nome, nas palavras que tirei da minha solidão. não tenho passado, nem biografia. a minha escrita é um rumor da tua ausência. a minha escrita é a rejeição do caos e do frio. e de todas as emoções que apenas os sozinhos decifram. és a minha escrita e todo o pavor a esvair-se no esquecimento de descobrir nos espelhos o demorado prazer de saber o nosso destino. tu és o meu destino a nascer como se amar-te fosse ter alguém dentro de mim a contar-me um sonho. alguém dentro de mim.

Ela: mas amar é acreditar em algo que não se vê. como é que sabes? Como que é que sabes que não passo de uma criação das tuas próprias palavras?

Ele: tu és uma gota.

Ela: não fazes sentido!

Ele: sabes, parece que passei tempo de mais submerso e recolhido entre lugares sem ninguém e após algum tempo começamos a sofrer uma espécie de privação sensorial. as pessoas tornam-se estranhos cujos rituais rejeitamos. mas depois surgiste tu. e vejo o sangue, as vísceras, a carne. surgiste tu e aprendi a fechar os olhos para te ver, para conhecer a luz que se desenha para quem perde o medo. o medo de fechar os olhos e ver além do negro total e dos pequenos pontos brancos que se acumulam agitadamente sobre o denso escuro. perdi o medo de quem não fecha os olhos, de quem julga que o dia se deita sempre no mesmo sítio. e é ali onde muitos desconhecem a história por detrás do medo que me ensinaste a invocar a vida. mesmo que não te apercebas. pior. mesmo que não queiras. mesmo que te perguntes se é contigo que eu falo. mesmo que não percebas porque me dirijo a ti.

Ela: sim, porquê eu? não passo de uma fábula que criaste. não me conheces verdadeiramente...

Ele: sim, uma fábula verdadeira. desde que pousaste nas minhas mãos e que todas as palavras me passaram a falar de ti que és uma fábula verdadeira. uma criação impossível pintada de letras contrárias encruzilhadas num tempo redondo. mas eu gosto de me bater com adversários invisíveis. e tu és mais um deles. reúnes em ti tudo o que existe e tudo o que não existe. és uma encruzilhada um enigma esculpido entre as sombras do silêncio das estrelas. o adversário mais anónimo que já tive. desde o tempo em que miúdo montava armas de papel e refúgios secretos de almofadas. passava dias naquele mundo. e aquele mundo tornava-se todo o mundo sem limites, todos os dias a serem aquele mundo e aquele mundo a ser todo o tempo dos meus dias. hoje. amo-te. sem que saibas. antes num pudor cintilante que me impede de te berrar o teu nome. e passo os dias neste processo de fingimento reduzindo-te a palavras. e por isso te mantenho assim: rudimentar, perfeita e absolutamente indecomponível.

Ela: mas tu falas comigo, escreves-me... como podes dizer que eu não sei de ti?

Ele: apenas te quero para sempre... como o eco da mais alta montanha a rasgar os mais estreitos caminhos. amo-te preciso de ti nesta vagarosa fantasia que é a eternidade.

Ela: percebes que fazes pouco sentido? assustas-me... o fervor que dizes sentir não é amor! é uma espécie de loucura, ou uma vontade cruel de tudo querer conhecer...

Ele: sim. sem dúvida! uma loucura que me faz voar contra o céu, que me faz mergulhar no fundo mais quieto dos oceanos, que me faz escrever o teu nome repetidamente até ao último resíduo de luz nas paredes. se querer conhecer os teus segredos é estar louco, pois que seja. que me alucinem os murmúrios do interior da terra, as vozes inconsoladas dos mortos, os corpos lentos e desequilibrados dos fantasmas, as luzes todas de sempre num filamento eterno nos meus olhos. se tudo isso junto de uma só vez durante todas as vidas me abrir o corpo para uma carícia tua justifica-se a loucura. se um olhar teu justificar todas as páginas brancas, todas as noites em monotonia de sono pois que criem essa ponte de silêncio. chamem-me louco. mas depois de ti cada sílaba vibrará sempre na certeza de que tu sabes que existe este amor.

Ela: não consigo perceber...

Ele: eu quero-te. mas se achas que por isso sou louco então viverei apenas do meu silêncio e das palavras que imagino que recebes. num sopro. num longo distante e melancólico sopro de quem também tem medo de saber se há mesmo vida para lá do sentir sombrio do sangue. tu chegaste assim: encantada. desdobrada em cintilantes esgares de mistério e subtilezas. chegaste e arrancaste-me de um pesadelo real. tão real. com a tua opulente respiração sussurraste-me "esquece as feridas". hoje tenho o sono ileso e em torno dele o som de uma vida a nascer como pele nova a cada madrugada. hoje sei rir ao rosto da lua e beber a seiva de sal de cada horizonte. por ti.

8 comentários:

Anónimo disse...

Não consigo dizer mais nada que não seja que escreves cada vez melhor. E não me refiro apenas a este texto mas a todos os que tens escrito. MUITOS PARABÉNS!

Anónimo disse...

Obviamente que subscrevo o que foi dito.

P.S.- Vê lá se dás sinais de vida real/material.

MA

Anónimo disse...

sim senhor! novo ar no blog... está mais adulto!! já não tem aquele ar de bambi perdido na floresta! gosto particularmente da foto... és tu? ahahahahahah, mas diz muito... livros e mulheres! Só falta o álcool, oh bukowski ainda mais feio!!! :-D

Stella Nijinsky disse...

Olá A.S.

Assim SIM!
Arrepiei-me bem perto do fim.
Muito bom, a fazer-me lembrar o primeiro post teu que li.

Beijo

Stella

Anónimo disse...

Da próxima vez que decidires escrever um post pensa nisto: só aqueles em que se percebe o que queres dizer é que são comentados!

A.S. disse...

1- gracias!

2- vou dando não te preocupes.

3- mais feio, com menos cabelo e sem o charme.

4- Stella, obrigado e de facto os meus textos falam sempre do mesmo. :-)

5- debruçar-me-ei com devotado afinco sobre essa observação. muito obrigado pelo teu contributo.

PontoGi disse...

"eu quero-te. mas se achas que por isso sou louco então viverei apenas do meu silêncio e das palavras que imagino que recebes. num sopro."

Lindo!

A.S. disse...

:-)