Fui gastar parte dos quase 400 euros que recebi do IRS do ano passado na melhor livraria do país. Agora que sabem que sou um homem de fartíssimos ordenados e que vos relembrei o dom que tenho para gerir o dinheiro que vou sofregamente ganhando, quero falar-vos rapidamente de A Estrada de Cormac McCarthy editado pela Relógio d'Água - a mesma que nos dá Bukowski em Português. Cormac McCarthy tornou-se recentemente numa espécie de Saramago pós-Nobel depois de ter sido citado pela preta que quer salvar o mundo no seu programa homónimo. Pronto, falo da dona de casa mais bem sucedida de sempre; a Oprah. Felizmente, já o tinha lido antes, caso contrário era certinho que não lhe pegava nem a tiro. Esta atitude diz muito de mim. Sou um gajo preconceituoso, eu admito. Não me refiro a questões raciais, sexuais ou de género. Nada disso. Falo de coisas fulcrais. Sou preconceituoso no modo com olho as pessoas nos olhos e as recrio e as imagino na minha cabeça. Sou preconceituoso no modo como vasculho as pessoas sempre com o intuito de encontrar algo que me agrade. Sou preconceituoso no modo como me convenço de que quase todos gostam do mesmo e de que quase todos estão tão longe daquilo que eu gosto. Ainda assim, mesmo admitindo já o conceito que tenho da Oprah, acredito que a mesma não faz a mais pequena ideia de McCarthy. Provavelmente terá interpretado as tiradas de amor do filho pelo pai numa espécie de reencarnação americana do Paulo Coelho. Estou certo que não foram a barbárie e crueldade poéticas que as personagens são forçadas a enfrentar no dia a dia que a convenceram a apresentar McCarthy às efusivas e choramingas mulheres da plateia - sim, já vi o programa. Bom, mas deixemos os meus monstrinhos em paz e falemos do livro.
A Estrada é um baluarte da distopia aterradora que nos assola enquanto civilização. Em cada parágrafo se dinamizam os elementares axiomas inaugurais, em cada ensejo presente tudo converge, ora aproximando-se do apagamento ora da cintilação, da cândida mão que brinca e cada vez mais a morte erguendo-se como mira, alvo, circunstância cénica, capa de caderno que se fecha, onde tudo se apaga e ainda fulge uma irresoluta luz. Num estilo seco e conciso, McCarthy crava as suas palavras - manchas de sombra de luz - num mundo que se torna um palco improvável onde os movimentos e os destinos não se esgotam. Em McCarthy, as cicatrizes são gestos encantados de amor, rasto de ferrugem na pele destacado pela violência da solidão.
A Estrada é um baluarte da distopia aterradora que nos assola enquanto civilização. Em cada parágrafo se dinamizam os elementares axiomas inaugurais, em cada ensejo presente tudo converge, ora aproximando-se do apagamento ora da cintilação, da cândida mão que brinca e cada vez mais a morte erguendo-se como mira, alvo, circunstância cénica, capa de caderno que se fecha, onde tudo se apaga e ainda fulge uma irresoluta luz. Num estilo seco e conciso, McCarthy crava as suas palavras - manchas de sombra de luz - num mundo que se torna um palco improvável onde os movimentos e os destinos não se esgotam. Em McCarthy, as cicatrizes são gestos encantados de amor, rasto de ferrugem na pele destacado pela violência da solidão.
1 comentário:
não conheço o autor. mas vou confiar em ti e vou lê-lo.
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