quarta-feira, agosto 29, 2007

Como o tempo

E não deve ser triste. Partir. Vê-la dobrar uma esquina e desaparecer ao longe. Como a distância impossível da onda que cai sobre o areal depois de rebentar junto aos nossos pés para se juntar a uma nova onda. E não deve ser triste. Perder. Esticar o braço e vê-la nas sombras dos corpos que se acumulam como um céu triste no espaço que antecede a despedida. E não deve ser triste. Chorar. Sentir que o fim chega súbito como morte de criança a quem roubaram os anos que ainda tinha dentro de si. E não deve ser triste. Morrer. Esquecer tudo o que aprendemos: a imagem negra da noite, o demorado beijo dos amantes e a suave brisa que nos sara o lugar deixado vago na pele. E não deve ser triste. Nunca chegar a perceber que o silêncio está dentro de cada grito como quando te disse: a tua mão cabe dentro da minha.

5 comentários:

Sónia Balacó disse...

Ou "Excerto de uma desculpa mentirosa". =)

Fuckin' beautiful, fuckin' sad.

A.S. disse...

Isto não são mentiras. Nem desculpas. São desejos torcidos. :-)

Ainda vais explicar-me essa coisa da mentira sempre que comentas por estas bandas...

Sónia Balacó disse...

Bom, neste caso específico é óbvio: quem diz a si mesmo repetidamente que "não deve ser triste" está a tentar enganar-se. Daí a "desculpa".

No geral, eu gosto do binómio verdade-mentira e de como estão intimamente ligadas. Vejo sempre em qualquer uma das duas o reflexo da outra.

Coccinella disse...

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo


(Mia Couto)

Um poema que gostaria de ter escrito. E é belíssimo, o teu texto. Como sempre tens habituado esta Morada.

A.S. disse...

s.b., não deixa de ser interessante saber a interpretação que os outros dão àquilo que escrevemos.

j.a., as palavras que me deixas ganham outra dimensão por virem de alguém que escreve tão bem como tu.