Começo a procurar-te no interior das penumbras do meu corpo. E do teu também. Vasculho-te, e não deixo que desapareças no abismo da memória. Nunca mais. Já não penso em retirar-me para o silêncio eterno das planícies. Agora que vejo nítido, surge o teu rosto imenso, agressivo e desafiador. Recordo com um sorriso os dias em que enfeitava a minha melancolia com plumas negras e flores de açafrão. Nas noites que se tornam assustadoras, andava sonâmbulo e cobria-me de sofrimento. Possuia-me com facas, pedras, gumes e paus. Quis tapar-me de gemidos e dor para não me lembrar que não te tinha encontrado. Outra vez. Mais uma vez. Ardi em sobreposições de álcool e sangue. Ecoavas em mim, sobre mim. Foste miolo da escrita, carne viva e rastro perfumado ao volante das noites. Agora, transformei em cinza florescente o amargo viver nas entorpecidas esquinas das ruas. Sabes, vivia passo a passo, lentamente, num cenário ópiaceo, em que te procurava nos desertos geométricos que desenhava do meu amor por ti. Mesmo quando dormia para lá do polén nocturno, essa misteriosa combinação de dor e memória, via já o teu nome a ceder lentamente às chuvas e a desaparecer. Perdia o senso, e tacteava a terra em que te vira pela última vez. Ali, sentia-te a esfarelar nos meus dedos como quem se toca no esquecimento do sexo na solidão das mais frias montanhas. Procurei-te sempre. Em cafés, rios, mares, guerras, nos múrmurios entorpecidos das prostitutas e nas manchas que a agonia da escrita me vai deixando no corpo. "Morro ou amo-te", cheguei a escrevê-lo com uma pétala de esperma quente na desfloração das manhãs em que te esperei em outros corpos. Outros corpos, sempre virados do avesso. Corpos onde te procurei, tanto. Eles foram miragens comestíveis. Desculpa-me. Mas foi a ti, teia nocturna do meu desejo, que procurei nos corpos dormentes. Foi a ti. Sempre a ti. Estiveste sempre aqui. Grão na fotografia, sombra na extremidade da minha nuca. Estiveste sempre aqui. Por trás das caras de areia do vento. Onde os meus olhos não chegavam. Tinha olheiras de água suja, de resina e de pólvora. Quero ver-te para sempre. Serás paisagem colada a mim, pó que se inspira, pausadamente, executando a encenação da morte. Como gosto de ti. Assim, simples. Como um arrepio que nos faz pulsar o corpo.
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8 comentários:
jovem dou-t 1 conselho: publica estes textos
Olá, Olá. Humm, esta conversa deste - ou devo dizer desta? - "anónimo" é-me familiar... Será uma anónima cujo nome começa por J?
enganaste-t sou homem e n te conheço de lado nehum
Olá, olá. Ok, de qualquer modo as minhas coisas já estão publicadas. Aqui. :-)
Convém então dizer que não concebo a palavra paga. As minhas pelo menos. Os blogues têm uma vantagem que é a de arrastarem consigo uma outra realidade que poderá pôr em risco o fim das letras enquanto elemento pago. Vislumbra-se o início da era da Imprensa Livre e da Palavra Gratuita. Acredito que o devemos fazer seja por carolice, por desejo, ou pela simples, e cada vez mais invisível, vontade de altruistica e GRATUITAMENTE disponibilizar aos outros as nossas opiniões e engajamentos. Ou não estivéssemos nós na era da comunicação global.
Hasta
Fiquei arrepiada com este texto. Tem cenários grotestos e duros de uma realidade crua, mas tb delicadas declarações de amor. gostei muito.
"Sabes, vivia passo a passo, lentamente, num cenário ópiaceo, em que te procurava nos desertos geométricos que desenhava do meu amor por ti." - Isto é lindoooo!
olá, ester.
ainda bem que gostaste.
Arrepio.
só vi isto agora e não não foi uma anónima começada por J. afinal tens mais admiradores do que pensavas, com nomes bonitos e tudo, Ester...
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