sexta-feira, fevereiro 08, 2013

2013: a barba, a rapariga, o grama, a amiga e a palavra chave.

1- É poderosíssimo o elo entre a memória da perda e prefiguração que dela fazemos. De barba raza.

2- A rapariga não quis receber os dois cêntimos: “Deixe lá estar isso”, disse. Não foi generosidade que se ficou com o troco, percebeu-se pela voz lassa, foi uma desistência profunda de tudo. “Deixe lá estar isso”. Assim mesmo. Estávamos na pastelaria e ela tinha comprado um bolo cheio de creme e 2 pães. Só os solitários condoídos compram dois pães pela manhã. Se lhe entregassem o boletim premiado do euromilhões certamente diria «deixa lá estar isso» com a mesma indolência de alma com que um dia se deixou cair. Penso. Pedi um Ice Tea e esperei pelos poucos cêntimos de troco. Não por convicção, mas não quis deixar sinais de negligência para outros devolutos desta vida.

 3- Cada vez mais me convenço que o obediente uso do português é recebido nas charcutarias como um momento de arrogância gramatical: «duzentos gramas de fiambre, se faz favor»

4- Há tempos um amiga minha contou-me que acabara com o namorado após uma relação de anos. Não aguentava mais. Demasiada exigência, demasiada pressão, demasiado conflito, demasiada incompatibilidade. A verdade é que a inevitabilidade desse desfecho era há muito exuberante. A única dúvida para mim, como para os demais conhecedores das danças do casal, estava em perceber como é que ela tinha aguentado tanto tempo de irremediável infelicidade. Mas, já se sabe, quando o amor é invocado os esquemas de inteligibilidade são outros, liças onde as questões do costume deixam de fazer o mesmo sentido. Quem descreve um sentimento ou uma relação socorrendo-se do ideário romântico -- o idioma da moda nos últimos séculos -- logo deve à coerência narrativa o imperativo de dar tudo por um amor. Tudo bem. O problema é outro: muitos há que, quando já não conseguem honestamente acreditar nesse amor, se obrigam a lutar; lutam aquele suficiente para poderem desistir com a consciência tranquila. Era por isso que a minha amiga lutava há muito, pela sua consciência. Uma consciência exigente. Ficou-lhe a dor e essa estranha paz: a paz romântica de ter dado mais do que podia.

5- Reli (com atenção) praticamente todo este blogue. Noto-lhe um certo travo de farsa, dado estarmos perante o desenvolver de um registo cujo capital central era exactamente uma forte implicação pessoal. Reli (com mais atenção ainda) praticamente os blogues que me acompanharam nessa ideia de uma co-dependência entre blogue e autor, ideia que o lastro da escrita sempre havia insinuado. Quase todos eles afrouxaram. Curiosamente, espera-se, a vida não. Entendo que o atractivo da história de um blogue se perca quando este começa a carecer da ideia de que cumpre um papel identitário importante como espaço para aleitamento de angústias, auto-depreciações, e reflexões biograficamente dotadas. Talvez por isso possamos dizer que nos conhecemos uns aos outros. Reli-vos. Como quem vê fotos de infância. Os arquivos arriscavam ser apreendidos por um renovado olhar onde a noção de ficção biograficamente informada deixava lugar para um sentimento retrospectivo de «farsa». Ou seja, para o intimismo resultar cabalmente é tão necessário que se perceba que o blogue depende de perto da vida e dos estados de espírito de quem o escreve, como necessária é a persuasão de que, em certa medida, o próprio autor depende do blogue como espaço para uma escrita pública não formatada, não constrangida do ponto de vista temático, com um intenso imperativo de estilo e com uma forte compleição narcísica. Palavra chave.

1 comentário:

Anónimo disse...

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