Todos parecemos vivos no fingimento traiçoeiro com que nos recolhemos dos rápidos prazeres aquando da morte. Na vertigem da vida, num tempo ausente de cuidados, todos somos humildemente humanos. E foi assim na última ilusão de mais um dia. Rogas. Pregas. Choras a piedade núbia dos segredos irrompidos numa nova linguagem. Escondes-te. Limpas as palavras, purificas o dia-a-dia. Dás uma esmola à consciência tolhida nas máscaras com que te enganas na vida. Voltas a chorar. Ancoradas as ossadas à morte. Recordas. O último poema que ela te leu. Naquele momento preciso sabes os dias medrosos que te acompanham. Vês-te. Naquele momento preciso. És lúcido nas lágrimas que te tolhem o cérebro de todas fábulas urbanas. O carro. A casa. As ramificações sociais. Os amigos. Juras não voltar a parar. Todo mundo naquele momento preciso é um enorme fragmento a mergulhar nos séculos de alegria com que guardas as profecias que agora ouves. E queres fugir de ti mesmo. Queres cair no sono. Queres controlar o resto do corpo e sair do caos infinito que o sussurro melancólico do anjos te mostrou. Choras. Naquele momento preciso choras e decides retocar de certezas puras todos os teus gestos. Choras. Naquele momento preciso pensas que tudo não faz sentido. Como o som da bala a ecoar na tua infância. Na solidão desse momento tornas-te poeta minucioso. Foste surpreendido pela verticalidade do veneno que te mostra naquele momento preciso a tua voz atada ao mais radioso labirinto. E recordas o dedo em riste do teu pai. A noite que se tornava imensa nos ruídos quando ele te mostrava a sombra das pedras. E recordas o amor cuidado da tua mãe. A sabedoria náutica que te desentorpecia a alma. E recordas o amor. Percebes naquele momento preciso o rosto ausente que sempre te acompanhou e o balançar dos seus passos. Sobreviveste assim. Em sulcos de ar. E choras. Naquele momento preciso o medo deixa de existir e pedes o nada inicial. Pedes os séculos passados, os dias perdidos, a solidão partilhada. Pedes um rosto. Um pássaro que te leve desse sonho escuro. E naquele momento preciso pedes um corpo onde te possas incendiar, uma boca onde possas deixar todas as cartas indecifráveis e todos os acrósticos. E choras em longínquos soluçares as palavras que não colaste na janela dela. Lembras-te agora como ser feliz. Como conseguir escrever para afastar a morte. Para envelheceres junto dela. Como esgueirado nas noites poderias tê-la contigo. Naquele momento preciso vês que a tua vida foi uma espera envelhecida sem riquezas que perpassem o destino da morte. Naquele momento preciso numa réstia final de sangue percebes que de nada vale viver tanto tempo se não seduzes quem por ti se encolhe ao sol na esperança de que saibas descobrir que o amor perfura as nódoas de todas as luzes. Naquele momento preciso nomear-te-ei na transparente teia do amor para que então me possas finalmente ouvir.
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4 comentários:
Só acho que é um desperdício limitares estes textos a um blog que ninguém conhece
MA
Quando leio os teus textos, tento imaginar a pessoa que enlevas. Impressionante as formas que lhe descobres. Pergunto-me o que seria ser musa, e inspirar versos. Tal como tu, mantenho-me do outro lado. :)
Fica bem
É quase como se não escrevesses em Português. Todos percebemos mas há um jogo de palavras de habilmente constróis e que faz com que o teu discurso quase que pareça uma outra língua.
MA, neste caso, cada coisa no seu lugar.
j.a., para já, e quase de certeza para sempre, será apenas fogo aceso que não arde. :-)
Hasta
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