A minha mãe tem olhado para mim com preocupação. Pergunta-me muitas vezes o que se passa, filho? A minha mãe olha-me com o seu olhar grande de quem sabe tudo de mim sem ter sido informada. A minha mãe olha-me e sabe que quando acordo o corpo ainda dorme dengoso e mole de morte cansada. A minha mãe sabe que quando acordo vivo outra vez na lentidão do medo. A minha mãe passa-me a mão na cabeça como as mães de todo o mundo fazem quando acham que os filhos têm febre. A minha mãe passa-me a mão na cabeça mesmo sabendo que não tenho febre. A minha mãe sabe que cresci diferente. Em espaços de ausências. Atrás da chuva. A minha mãe fala-me num ressoar de carinho como se tivesse em cima de uma montanha grande onde se guarda todo o amor do mundo. A minha mãe tem na voz mais do que apenas a voz . A minha mãe quando fala não emite apenas um som com palavras. A minha mãe quando fala eu entendo-a dentro de mim nos dias de passeios de mão dada na cadeira de baloiço no cavalo de madeira nas camas feitas com lençóis limpos acabados de lavar a cheirarem a cestos cheios de laranjas apanhadas aos saltos e em corridas infantis de quem apanhar mais fruta ganha e quem correr primeiro até ao portão ganha e de quem não pisar os quadrados pretos ganha e de quem se esconder mais rápido ganha e de quem saltar mais alto ganha e de quem subir mais rápido as escadas ganha e de eu dou mais toques na bola do que tu na cozinha sempre arrumada nos meus livros sem pó na lareira de lenha a arder nos invernos de histórias que reflectiam o sol dos dias de verão. A minha mãe olha-me e sabe tudo de tudo como se os meus movimentos e silêncios fossem o claro reflexo de alguma coisa dentro de mim. A minha mãe quando eu era pequeno dizia-me que todos gostavam de mim e que tudo ia brilhar sob um céu limpo e puro. A minha mãe sabia as respostas que eu precisava. A minha mãe vive dentro de mim e eu aperto tudo o que vive dentro de mim e fecho guardado em caixas de lamentos tudo o que vive dentro de mim. A minha mãe fala-me muito liga-me muito pergunta-me muito. A minha mãe sabe que o silêncio dos sozinhos é a noite toda a envolver-nos o corpo. A minha mãe sabe que vivo no silêncio de só querer os meus ruídos e os meus ruídos assustam-me e assustam-na mas a minha mãe não tem medo e não deixa que o meu silêncio me assuste nem no pânico de descobrir as lágrimas e o frio de tudo o que me enche o corpo num insuportável recomeçar diário. A minha mãe quando eu era pequeno envolvia os seus braços no meu corpo quando eu tremia e quando as lágrimas eram de dor de doença os meus olhos sussurravam-lhe mãe doi-me muito aqui e ela a ser o sol que rasga os vales a luz que pisa a sombra ela a ser os sítios mais bonitos de estrelas espalhadas no lugar infinito onde nasce o amor. A minha mãe quando me pergunta o que se passa, filho? é uma menina triste no olhar que sabe que o mundo já não lhe cabe nos braços. A minha mãe queria que a minha dor fosse de criança grande para me abraçar novamente e me arrancar dos braços o peso absurdo do meu sofrimento. A minha mãe não quer acreditar que caminho perdido de mim quase sempre entre sombras cada vez mais longe de mim cada vez mais dentro do fim onde os gritos moldam o vulto do silêncio de quem caminha para as distâncias da morte. A minha mãe é bonita de um bonito de criança de um bonito de menina linda de cabelos lindos de testa branca e lisa de um bonito de olhos verdes de um bonito de mãos pequenas e de nariz pequeno de um bonito de mãe bonita. A minha mãe é bonita e não percebe como é conhecer a escuridão antes de fechar os olhos. A minha mãe é bonita e não tem as portas abertas ao medo e à tristeza toda de tudo. A minha mãe é bonita na esperança de que toda a tristeza tem fim e de que a mágoa é uma espada espetada temporariamente no peito. A minha mãe ergue-se inocente da terra e perante o meu mundo tenta com o seu riso e a sua voz dar-me a sua serenidade como que a dizer que as crianças não devem sofrer e tu és uma criança e serás sempre a minha criança, filho. A minha mãe foi plenitude feliz nos meus dias de ternura a perseguir insectos nos jardins hoje é tempo pouco tempo de instantes perenes na minha vida acordada para uma realidade triste. A minha mãe sabe que quando pergunta eu não vou responder. A minha mãe sabe que o meu olhar escondido é uma resposta que só ela entende. E que só ela recebe.
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11 comentários:
Porra que até me vieram as lágrimas aos olhos!
Muito bom!
mano, haja talento como o teu! e finalmente um texto que percebo do início ao fim... :P
Fiquei tolhida. Mãe...
Escreves com fios de prata, a escorrer dos dedos. Parabéns!
gostei tanto...!
Parabéns! Mãe e filho empatados pelo amor e cumplicidade que vos une...
é pouco estranho congratular alguém pelo que escreve, mas de facto mereces. muito bem! este texto é lindo!
Exagerados! Mas ainda assim obrigado!
venerável texto.
parabéns pelo momento inspirado.
Depois de um elogio do próprio Fernando Pessoa, quem sou eu para te elogiar...? Continua a escrever! ;)
Looolll! Um Fernando Pessoa bracarense! :-)
Obrigado aos dois!
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