quinta-feira, setembro 20, 2007

A nitidez do mundo

Haverá sempre nas gotas da chuva das nuvens um cheiro a cinza molhada e a terra embrutecida. A chuva sabe aos restos dos pedaços fundos do céu. Onde estão os segredos guardados para os crentes. Como o meu Amor. Como no dia em que me morreste. Como no dia em que deixamos de ser imagem reflectida no espelho. Verso e reverso das mesmas mãos. Como no dia em que o meu corpo deixou de fazer parte dos desenhos que fazes no ar. Como dia em que me fizeste chorar todas as lágrimas do maior desespero do mundo. Como no dia em que o meu corpo morreu sem ser devorado por bichos. O coração roído pela mais forte dor, pela dor mais extrema de todos os gritos de todas as dores, pela dor de todas as gargantas a sentirem a dor mais aguda de já não te ter. A dor de já não ter por quem sofrer e a dor de sofrer por quem já não se tem a serem o único pensamento de todos os pensamentos a dor a ser a respiração unânime do meu corpo a dor de já não gostares de mim e de já não ser a única pessoa de todas as pessoas de todo o mundo a dor de já não ser essa pessoa. A dor de todas as noites que já não serão as estrelas nuas a dor das facas resolvidas no oceano fundo e escuro que são agora as minhas noites. A dor de muitas mortes a estilhaçar-me o sangue como vidro martelado, todo o corpo se tornara na dor como se a dor fosse tudo o que me disseste como se fosse tudo com que me mataste. A dor a ser o meu ritmo, espaço para o corpo desarrumado que suporta os instantes de esforço sem ti. A dor a ser vida em esforço, respiração, pulsação, articulação em esforço. A dor a ser a indiferença a ser tu em outros braços a ser a tua mão a caber dentro de outra mão a ser as noites sem os teus gritos. A dor a ser o teu corpo dominado por outra força. A dor a ser a nitidez do mundo. A dor a ser um cego a caminhar para o abismo a crescer num precipício sem poder fugir sem poder fugir ao encontro daquilo que já não serei. A dor a ser as tuas últimas palavras fixas nos ouvidos a ser tudo o que ouço desde aí a dor a ser uma criança que berra um pedaço de carne que entrou no meu ouvido para repetir as tuas últimas palavras a dor a ser essa presença constante a dor a ser o exacto contrário do teu sorriso do teu olá e do teu grito de amor ao meu ouvido. A dor a ser maior de que todos os terços de todas as velhas de todo o mundo a dor a ser maior do que o silêncio de todos os sozinhos que esperam a noite à porta de casa. A dor a ser a única certeza da minha vida a ser a escuridão mais negra de todas as portas fechadas. A dor a tornar os dias longos e vagarosos. A dor a partir as raízes dos nossos troncos a quebrar a aspereza salgada dos verões e o esculpido frio do Inverno. A dor a ser a mágoa de só te poder lembrar num silêncio imóvel.

10 comentários:

Ninguém disse...

Li tudo, vasculhei todas as vidas, entrevistei todas as pessoas para encontrar uma solução para essa dor. Um medicamento para a Alma. E após todo este tempo, lamento dizê-lo, mas cheguei à conclusão que não existe. Só o tempo ou a sorte de outro alguém te fazer o coração sorrir novamente. E uma mistura bem equilibrada desses dois factores. Viver assim é desumano mas a única solução é continuar, mesmo quando não resta energia para abrir os olhos de manhã, de tão inchados. Dei por mim a fazer contagem sobre quantos minutos demorava, quando acordava, a ter "aquele" pensamento que nos destrói."Já não estás aqui".Continuo a contar.Todos os dias. Espero um dia me esquecer sequer de qual era o pensamento, mas todas as grandes tarefas exigem um percurso penoso. E, no fim, seremos melhores ao que eramos antes.

Sónia Balacó disse...

"A dor de todas as ruas vazias."

Ninguém disse...

..."e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar."

A.S. disse...

Olá, olá.

Ponto prévio: meguinha, não acredites - ou melhor: acredita, mas não tomes por verdade - em tudo o que por aqui lês. Se há coisa que eu gosto de fazer é criar fábulas telúricas e encenações post-mortem... Ainda assim, posso dizer-te que não quero nunca encontrar solução para nada. Muito menos para o amor.

S.B., já nem sei mais o que dizer. És um dínamo. :-) :-)

Ninguém disse...

Não parti de nenhum pressuposto sobre ti, apenas comentei aquilo que escreveste. E eu também não procuro solução para o Amor, até porque não existe. Procuro solução para o sofrimento. E procuro soluções para tudo, sempre. É isso que nos faz evoluir. A tua "fábula telúrica" é bastante real para muita gente e é normal que muita gente se identifique. E é normal que respondam a isso. O que não é normal é ficar indiferente. Mas o conceito de normalidade tem muito que se lhe diga.

Au revoir.

A.S. disse...

De facto, tem! :-)

Quanto ao resto, estamos em desacordo. Não vejo mal em que o sofrimento e o desgosto - ou o quer que seja - não cessem. Tal como o Amor. O jogo é o mesmo. É uma espécie de ausência de regras, de sentido estabelecidos, de elementos metódicos.

P.S.- Uma pergunta: não dá para abrires o cofre de Goethe à luz dos leitores? :-)

Ninguém disse...

Se todos tivessemos a mesma opinião, nada se faria da vida. Quanto ao "cofre", está à disposição o meu próprio, para que possa ler a luz dos meus leitores sem o olhar indiscreto de outros....

Sónia Balacó disse...

Um dínamo? Tive de ir ao dicionário e mesmo assim não sei se percebo.

Mas como acho que isso até era capaz de ser um elogio, cá fica o típico =).

A.S. disse...

Sabes que isto de ter tido 2 anos de Grego na faculdade tem as suas vantagens :-)

Digamos que és um dínamo na medida em que és uma força genésica, ligada a origem. Ora, as palavras que foste buscar do Al Berto estão obviamente na origem daquilo que eu escrevi. Tu identificaste isso, logo és um dínamo! :-) :-)

Sónia Balacó disse...

Está bem, compro. =p