Ouço muitas vozes. São-me quase todas familiares. Mas não de pessoas que eu conheça. Cheguei à conclusão que me são familiares porque vêm de dentro de mim. Acredito piamente que os nossos órgãos possuem a capacidade para se lamentar. Do mesmo modo que os ossos e músculos. Os meus queixam-se. Muito. Todos os ossos do meu corpo são aquosos. São frágeis. E silenciosos com as grandes profundezas dos oceanos. Queixam-se através de movimentos arenosos. Arrastam-se e sinto toda a parte interior da minha pele a sangrar. Para os músculos não encontro remédio nem consolo. O tempo já há muito que me tolheu os movimentos mais característicos das pessoas com sede de vida. Saio pouco. Falo ainda menos. Não sei o que são cinemas, teatros, estádios. Não conheço ninguém. Leio tudo o que posso e escrevo o suficiente para conseguir atravessar esta espécie de travessia do deserto. Mas o que me preocupa são os órgãos. Nas raras alturas em que durmo, a maior parte de dia, adormeço sempre na esperança de que os meus órgãos cessem a angustiante insónia a que estão destinados. Não me importava de não acordar só para ter a certeza de que eles também repousam. Há nos nossos órgãos uma precária eternidade. A vida também é isso. Não tem a ver com aquilo que fazemos ou o quanto andamos. A vida é um constante desejo que não foi realizado. Assim, aprendi que, para não enlouquecer e para não arrastar comigo aqueles com quem convivi, devemos construir o dia a dia a partir de actos simples. Assim, nunca mais senti a impressão nítida de estar a deixar o mundo. Vivo a vida mentalmente de passagem. Reduzi-a, segundo aquilo que está convencionado, a quase imperceptíveis movimentos, a raríssimos rostos. Acredito que poucos de nós saberemos o que é estar vivo. A grande maioria da qual faço parte limita-se a esconder o corpo o mais que podem para evitar a morte.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
"Há nos nossos órgãos uma precária eternidade."
gostei desta frase
só uma pergunta. o título é de uma música dos silence4 não é
Olá anónimos.
Bem, o título representa aquelas que são tidas com as últimas palavras de Fernando Pessoa.
Quanto aos silence4, lamento mas não são de todo a minha praia...
Eu não tenho nada contra o David Fonseca - aliás, muito pelo contrário - mas, caro anónimo, isso é pura blasfémia.
A.S., tens mais vida nas veias do que o que dizes. Gosto do teu blog.
(Dois elogios.)
Blasfémia :-) Não me lembrei dessa :-)
Obrigado pelas palavras.
Enviar um comentário